Mudanças de Paradigma para a Sociedade do Futuro
Meu nome é Francisco Kurpiel, eu sou programador. Minha irmãzinha certa vez quis saber o que eu faço no meu trabalho. É meio desconfortável explicar para crianças e para pessoas mais velhas que eu fico sentado o dia inteiro na frente do computador apertando botões e mexendo no mouse. As crianças nunca têm paciência de ouvir uma explicação completa de o que é um programador. E eu vejo com freqüência nos olhos dos mais velhos algo como ‘... mas você não trabalha?’. Parece que é meio difícil para alguém duas gerações mais velho que eu imaginar que ficar na frente do computador o dia inteiro sem despejar uma gota de suor também é trabalhar.
Talvez eu tenha finalmente encontrado uma forma um pouco melhor de explicar o que eu sou. O trabalho dos programadores é tornar o computador mais e mais útil. Útil para quê? Para qualquer coisa que alguém possa querer, dentro de certos limites, a ponto de nos motivar a ficarmos o dia inteiro na frente do computador. Nós, programadores, tomamos o conhecimento de alguma área emprestado, formalizamos ao extremo e ensinamos ao computador na linguagem dele. E assim o computador se torna mais e mais útil.
O que os computadores podem fazer hoje? Existe uma quantidade tão grande de problemas que podem ser resolvidos por um computador que qualquer coisa que eu pense em citar parece ser ridícula. Mas eu estou preocupado com as aplicações mais produtivas do computador.
A nossa sociedade (pelo menos em boa parte do mundo) é baseada no trabalho e na moeda. Isso impõe um delicado equilíbrio que nossa sociedade funcione hoje, com pessoas felizes, que trabalham, ganham o seu dinheiro e então fazem o que tem vontade, com assistir TV tomando cerveja.
Parte fundamental do atual mecanismo da sociedade são as empresas. O objetivo geral das empresas é ganhar dinheiro. Classicamente elas precisam pagar funcionários para que eles ajudem a empresa a ganhar dinheiro. O que aconteceria se os funcionários não fossem mais necessários?
O dia-a-dia de boa parte dos programadores é automatizar alguma coisa. Temos, por exemplo, plantas de geração de energia que podem ser operadas com apenas um funcionário, que fica olhando um console de um sistema automático para o caso de alguma coisa dar errado. Neste momento certamente existem empresas de informática e de automação trabalhando projetos para substituir alguma máquina que exigia x funcionários para ser operada e vai precisar de apenas y (sendo x maior que y). Até agora os empregos eliminados aqueles de tarefas repetitivas e pouco complexas, e aparentemente as vagas que estão sumindo aqui estão sendo absorvidas por trabalhos mais intelectuais, onde a automatização é mais complicada. O próprio processo de automatização requer muita gente trabalhando.
A automação um processo progressivo. Uma empresa que tem 10.000 funcionários economizaria bastante dinheiro se pudesse tornar desnecessários 2.000 deles. Para tal basta descobrir o que eles fazem, tentar formalizar ao extremo e ensinar a um computador. O mesmo trabalho passará a ser feito sem erros, muito mais rápido e não será necessário pagar salários. E progressivamente as vagas vão ser eliminadas pelas máquinas. Teremos 20% de desemprego no mundo, então 40, 70, 80. Eu não sei até onde isso vai, mas não acredito que o nosso atual modelo suporte 40% de desemprego mundial.
A conseqüência disso é que teremos trabalho para tão pouca gente que o capitalismo como o conhecemos não poderá sobreviver. Mas não devemos ver a automação (ou os programadores) como uma vilã(ões), e sim o capitalismo, que é simplesmente incompatível com os rumos da sociedade. Nós precisamos encontrar um novo paradigma para a sociedade, para que ela continue funcionando quando o trabalho não for mais necessário. O modelo da moeda e do trabalho em breve entrará em colapso.
Como poderia ser esta nova sociedade? Nós temos as duas premissas básicas:
• O trabalho não será obrigatório;
• Todas as pessoas, as que trabalham e as que não trabalham deverão ter acesso aos bens e serviços disponíveis;
Parece ser um problema grande. Mas observe que partindo do princípio de que o desemprego realmente atinja o ponto de tornar o atual modelo insustentável então recairemos exatamente nestas premissas.
“Mas como as pessoas que não trabalham vão comprar bens?”
Essa pergunta não fará sentido no modelo que irá surgir por que a palavra comprar não existirá ou terá um sentido diferente.
Nós também não podemos ignorar que, pelo menos por um bom tempo, ainda existirá necessidade de algum trabalho humano. O novo modelo, além de dar acesso aos bens e serviços a quem não trabalho, vai ter que resolver o problema de como recompensar aqueles que trabalham por produzir os bens consumidos por toda a humanidade.
Eu gostaria muito de ver uma sociedade como a sugerida em Star Treak: First Contact, onde aqueles que trabalham o fazem por desejar o crescimento pessoal. Isso resolvia o problema, por que aparentemente havia um número de vagas compatível com o número de voluntários. Mas pensar nisso hoje, vivendo em uma sociedade capitalista é quase impossível.
Como seria a vida em uma sociedade onde parte, (e em algum momento a maioria) das pessoas não executa nenhuma atividade produtiva? Elas teriam 100% do seu tempo livre, elas consumiriam, consumiriam, dormiriam, consumiriam, consumiriam, dormiriam... Quanto elas consumiriam? Tudo o que estivesse disponível, é claro. Mas como isso seria dividido? Igualmente? Essa é outra pergunta que precisa ser respondida. Talvez exista um igualitarismo entre os cidadãos não-produtivos. E os que produzem teriam direito a consumir mais? Será que vamos instigar a ganância como forma de manter a sociedade funcionando?
Eu imagino que a mudança não ocorrerá do capitalismo uma sociedade dos moldes de Star Trek diretamente, até por que o desemprego será um problema que vai aparecer lentamente. Mas quem sabe em que níveis a relação vagas/população vai chegar? Programadores estarão sempre tomando o conhecimento de humanos emprestado e ensinando um computador a substituir as pessoas. E se o leitor puder imaginar que existirão máquinas inteligentes então podemos pensar que chegaremos a números extremos, como vagas para apenas 1% da população ou talvez até menos. Se o leitor não acreditar na possibilidade do surgimento de formas de inteligência artificial então nós sempre teremos algumas vagas que nunca serão preenchidas (como as dos programadores). Mas caso tenhamos 90% da sociedade livre de trabalho o panorama será sério a ponto de ser impossível termos, por exemplo, uma sociedade capitalista com um governo benevolente que mantém a sociedade funcionando.
E qual será a motivação para as crianças estudarem? Aquelas que estudam para ter emprego perderão sua motivação. O sistema também precisará ser estável, não queremos que a evolução do capitalismo leve a um modelo fraco que possa ruir, formando, por exemplo, uma geração de crianças sem cultura, que possa perder aquilo que a humanidade acumulou desde que a primeira forma de escrita surgiu.
Talvez toda essa idéia possa parecer um pouco insólita. Mas não podemos ignorar que os computadores tem um desenvolvimento extremamente mais rápido do que o desenvolvimento biológico da nossa espécie. O primeiro computador surgiu a menos de 100 anos. Quem sabe o que os computadores serão capazes de fazer em mais 100 anos. Ou em 200, 400 anos. Em um momento teremos computadores com a nossa capacidade cognitiva. Em pouco tempo o computador vai evoluir um pouco mais e vai passar a capacidade humana. E vai ter o dobro, o quádruplo, dez vezes, cem vezes a capacidade humana de pensar. Nós vamos precisar sim de um novo modelo para a sociedade. E lidar com computadores mais espertos que nós será apenas mais um problema (à não ser que tenhamos uma evolução artificial da espécie humana para manter o nosso orgulho, o nosso status de coisa-mais-inteligente-que-conhecemos). De qualquer forma eu acredito que qualquer modelo que atenda às duas premissas da sociedade do futuro será um enorme avanço para a humanidade.