terça-feira, 16 de agosto de 2005

Cenas de uma estética da corrupção

Fragmento de manuscrito encontrado num latão de lixo, sob notas fiscais e faturas queimadas:

(...) Não consigo ordenar as idéias. Não consigo mais interpretar nada, diante desta crise. As frases rolam em minha cabeça, as imagens se sucedem como um filme sem fim, sem meio e sem início ou, melhor, com um início longínquo, lá do fundo do Império e mais atrás, do fundo da Colônia. É tudo tão feio, tão sujo, tão ralo. Há uma revolução estética em marcha, a estética da corrupção, o arrasamento de todas as belezas, um manifesto do neogrotesco, o barroco sujo, um show de monstros que começa nos corpos espatifados do Iraque e Londres e acaba nos dentes tortos do Delúbio balbuciando baboseiras estratégicas na TV. Há uma cenografia, figurinos, um documentário no ar, mostrando as galinhas ciscando no terreiro do barraco do Ceará de onde vieram os 100 mil dólares na cueca, as galinhas ciscando, o irmão analfabeto dizendo: "Ué, ele é só o vaqueiro, precisa saber de quem é a boiada..." e, ao fundo, a rua de lama com as crianças famintas onde seria aberta uma pretensa agência de automóveis e outro parente miserável rindo sem dentes: "Chiii... aqui não tem dinheiro nem pra comer, quanto mais pra automóvel, seu moço..." As desculpas são tão vagabundas, tão desrespeitosas com a mínima inteligência, as caras são tão feias, tão malcuidadas, as barbas mal aparadas, a careca do Valério lembrando a cúpula do Congresso, e eu, meu Deus, que acreditei no romantismo, eu que perdi o medo de ser feliz, eu, que sonhava com heróicos peitos e heróicas milícias bradando Miaskovsky e, de repente, só me aparecem jacus, militantes-jacus com bigodeiras, ternos marrons, gravatas amarelas, boçais, rudes, famintos de todos os sonhos burgueses, meu Deus e o filme antigo preto-e-branco passando no cérebro do Dirceu, as massas na Rússia, correndo em São Petersburgo e os caderninhos vermelhos de Mao e as palavras velhas, a "alienação", a "superestrutura", os "fins e os meios", e ele falando: "Eu fiz o que tinha de fazer." E o ato falho de Dirceu: "Esse é o preço que pagamos para ter maioria no Congresso." E o ato falho de Delúbio, no fim da entrevista na TV: Fiz isso para "desviar"; isto é, ahhh... "ampliar recursos" e a ditadura dos conceitos consagrados pela academia, impedindo a reflexão pelos dogmas, tudo parece uma maldição de horrores se somando, o "deus executivo" da Igreja Universal, a cara do bispo João Batista, bicando como uma galinha branca, adunco, garras afiadas para sugar o povo pobre, empurrando a imprensa e pulando feito um carcará no meio dos milhões de notas embarcados no jatinho, e a democracia impotente diante de bilhões de reais em Miami e Atlanta e ninguém pode fazer nada, e os advogados, sempre iguais, ternos brilhantes, gravatas hediondas falando em "provas", em "recursos", complexas frases para ocultar a gatunice, a ladroagem, enquanto o Dirceu chora, Sílvio Pereira chora, Delúbio chora, Genoino chora, todo mundo chora e "não me lembro do empréstimo de 30 milhões de dólares e assinei sem ler e não sei o que ele fazia com tanto dinheiro na cueca e este é um governo que não rouba nem deixa roubar e nunca ouvi falar em mensalão e doa a quem doer eu vou cortar na carne e eu tenho de defender minha biografia e o Brasil (leia-se "eu") "não merece isso" e o fascinante esforço para mentir bem, as caras calmas na base do Lexotan, os olhos úmidos que querem emocionar o espectador e as mãos sem tremores e os sorrisos humildes e as lembranças da família e meus filhos, meus empregados, minha esposa, e os contratos, como intestinos saindo um de dentro do outro, contratos que se vão parindo, dando filhotes, abortos, e as caixinhas as cumbucas e o árido hall do Banco Rural, entre um dentista e um ginecologista e um prostíbulo e o gesto eterno do grande Maurício embolsando os 3 mil, seus dedos ágeis, seu bolso voraz, meu Deus, onde há um pouco de beleza? Onde está Guimarães Rosa? Venham nos salvar! Onde João Cabral, onde Graciliano? Onde artistas maiores do Brasil, onde estão todos? Onde Tom, onde Vinicius, enquanto Gil chora e canta sem parar agarrado no colo do Lula, perdido dentro do deslumbramento, abandonado pelos bolchevistas, pendurado na única bóia de seu governo, a economia deixada por FHC, cercada de burrice num anel de erros. A burrice sagrada, a burrice dos patetas absolutos, que sozinhos boicotaram o próprio governo, a burrice como um gigante de Goya, um imenso bode preto, a sombra da completa imbecilidade incensada pelos intelectuais de esquerda, fazendo-me lembrar de Terra em Transe e de Glauber Rocha que previu tudo isso há 40 anos, mostrando que o problema era o samba das oligarquias, tapando a boca do idiota popular e berrando: "Já imaginaram essa besta no poder?" As bestas estão no poder. E não falo do Lula, inteligente, zonzo e desatento. Falo das bestas em volta, há dois anos e meio discutindo ideologias, traçando estratégias para um socialismo imaginário e nem uma estrada consertada, nem uma medida tomada, e grupos de trabalho embolados em vaidades e teorias vagas e "questões de ordem" e uma boçalíssima incompetência sob o vôo das notas fiscais queimadas em latões para ocultar as fazendas imaginárias e os cavalos imaginários e os bois de ar, tudo ar, e os laranjas famintos no sertão sem dentes, donos de fazendas de caretas e ladrões e a piada ridícula dessa Operação Uruguai 2, e direita e esquerda se encontrando no infinito e trapalhões soviéticos ignorantes destruindo em semanas tudo o que um partido tinha construído em 25 anos, é espantosamente feio tudo.... ....(aqui, o manuscrito se interrompe...)

Arnaldo Jabor, 19 de Julho de 2005, Estado de São Paulo

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